PARA REFLEXÃO (FOR REFLECTION)


Texto publicado na Revista da SUESC. Nº 2 - 2000. Ingresado al ARCHIVO VIRTUAL DE SEMIÓTICA en julio, 2001. http://www.archivo-semiotica.com.ar/Textos.html

A TRINDADE NO CONHECIMENTO: UMA LEITURA SEMIÓTICA LIBERTÁRIA
Darcilia Simões

Devemos reconhecer nosso duplo enraizamento no cosmos físico e na esfera viva e, ao mesmo
tempo, nosso desenraizamento propriamente humano. Estamos simultaneamente dentro e fora
da natureza. (MORIN, 2000: 48).
Resumo: Releitura das políticas educacionais com implicações na própria natureza humana e nos
compromissos socioculturais. Discussão da necessidade de um novo modelo de escola onde o indivíduo seja apetrechado de subsídios semióticos mínimos que orientem a sua compreensão do mundo e de si mesmo. A estratificação social e suas consequências perversas na produção de paradoxos que levam o homem à perda da dignidade humana e o tornam em coisas que se prestam à consecução de objetivos nem sempre benéficos à nação. Os avanços da ciência e a estagnação da evolução intelectual. Uma breve síntese da tríade peirceana dos valores sígnicos em relação ao seu objeto-referente em diálogo com os objetos-valores sociais que movem as "reformas" políticas praticadas nas últimas três décadas no Brasil.
Palavras-chave: semiótica – hermenêutica – evolução intelectual – transformação social – educação.

O modelo estrutural praticado nas décadas de 60 e 70, criaram hábitos dicotômicos que parecem haver restaurado o maniqueísmo confortável que leva o homem a oscilar entre o bem e o mal, o certo e o errado, o feio e o bonito, enfim, entre duplas antagônicas responsáveis pela instauração dos conflitos que fazem da "pobre criatura humana" um verdadeiro refém das coisas e da história.
A partir desse comportamento eminentemente binarista, o homem foi tornando-se reducionista, e a
simplificação dual extremada acabava por levar questões da mais alta complexidade para o eixo do "isto ou aquilo", gerando, por conseguinte, uma visão simplória dos fenômenos experimentados ou apreciados.
Por conta desse estado de coisas, a ciência veio sofrendo reflexos dessa simplificação, dessa redução. E uma das consequências mais sérias foi a extremada especialização do conhecimento. A escola tradicional (sobre a qual temos inúmeras críticas negativas a fazer e muitas restrições técnico-pedagógicas a declarar) não pode deixar de ser vista por um lado meritório: o dos conhecimentos gerais. Os egressos daquele modelo de escola, a despeito do excesso de autoritarismo lá vigente, concluíam o curso Colegial (um dia secundário; hoje Ensino Médio – de novo) com um cabedal de conhecimentos gerais que os tornava capazes de ingressar num terceiro grau e entrar em contato imediato com os clássicos da literatura universal sem que houvesse qualquer crise de pânico. Naquele modelo de escola, o estudo da língua materna (ressalvados os desvios de natureza didática) fazia-nos ler os clássicos da literatura nacional (ainda que em excertos especiais em alguns casos) e deles extrair informações de cultura geral que hoje não integram o repertório (Que lástima!) sequer
da maioria dos alunos de pós-graduação. O vocabulário de um concluinte do curso colegial (normal, científico, clássico, etc.) naquela época (sem qualquer saudosismo irracional!) era suficiente para ler e compreender um texto de Dostoievski (traduzido, é claro!) com a mesma facilidade com que lia páginas de José de Alencar ou Eça de Queiroz.
Hoje, a leitura de um paradidático do tipo "O Gênio do crime" ou "De olho nas penas" é uma árdua e longa tarefa, uma vez que, além da falta de repertório lingüístico-cultural, o hábito de ler também não é uma constante. No máximo, leem-se-se as manchetes dos jornais diários (quando há interesse e tempo de parar alguns minutos diante de uma banca de jornal).
Veja-se então que, a despeito dos avanços científicos e tecnológicos, a qualidade do ensino e da escola vem demonstrando uma involução assustadora. Quanto mais se estudam metodologias de ensino e quanto mais de descobrem novos caminhos para o prolongamento da vida, menos se auxilia o homem a desenvolver sua intelectualidade. Os progressos detectáveis são fruto de um conjunto ínfimo de afortunados estudiosos que, por sorte ou por arrojo, conseguem transpor as barreiras políticas do descaso com a educação e chegam a um Doutorado, teimando em crescer e ajudar no desenvolvimento de sua nação.
A história humana é a das lutas pelo conhecimento da natureza, pelo poder de interpretá-la cada vez mais e melhor, a fim de dominá-la, de transformá-la. De geração em geração, herda-se um conjunto de informações organizado pelos mediatos e imediatos antepassados, que se embebiam em "leituras" míticas, proféticas, religiosas, filosóficas, enfim, cunhadas numa dada ideologia, que, a seu turno, fundava-se na interpretação dos signos do mundo; ou seja, numa hermenêutica geral.
Tal cenário leva um grande grupo de indivíduos a pensarem em deitar em berços (esplêndidos ou não) e utilizarem as classificações já feitas, as teorias já elaboradas, enfim, dispensarem-se da tarefa de repensar o mundo e a ordem instaurada, de modo a criar (ou aperfeiçoar lhe) o modelo praticado com vistas à melhoria da qualidade de vida.
Fala-se em crises econômicas, ecológicas, religiosas, familiares, existenciais, etc. Discute-se: a morte pelas drogas (depois de centúrias de fumaça saída das bocas-chaminés humanas, finge-se acordar para o perigo do cigarro); a difusão do câncer feminino (de mama e do colo do útero); a maturação precoce dos órgãos sexuais decorrente de uma estimulação do erotismo pelas danças criadas em torno de "ruídos" gravados em CDs, num piscar de olhos, na "corrida do ouro" promovida pelas gravadoras e pela mídia.
Afinal, para onde está caminhando a humanidade? Mata-se em nome da fé. Aumentam-se salários de
algumas categorias sob o álibi de torná-las independentes e imunes ao suborno (ou algo semelhante). E nesse cenário convivem, de um lado, assalariados que dizem não poder viver dignamente sem uns tantos mil reais do auxílio-moradia; e de outro, pobres mortais que tentam sobreviver com cento e cinquenta reais (salário mínimo) sem nem mais saber o que é dignidade!
Quando falamos em A trindade no conhecimento: uma leitura semiótica libertária, pensamos em trazer à baila uma reflexão sobre pré-condições de formação dos indivíduos no que tange ao entendimento de si mesmos e do mundo que os cerca. Observe-se que, em trecho anterior, numa tomada dicotômica, examinamos o bom e o mau, baseando-nos em modelos da vida real do povo brasileiro. A partir disto, impõe-se uma questão filosófico-ideológica relativa à competência dos discursos que conduzem a nação para o caos sem que se perceba (falamos aqui do brasileiro comum, da massa popular) que estamos a bordo de um "titanique", e, a qualquer momento, afundaremos em nossas ilusões de mudança e de dias melhores.
A leitura do contexto sociocultural precisa de uma instrumentalização mais forte, mais significativa e,
consequentemente, mais consciente. Um país que possui a abundância de leis como o Brasil e que apregoa em seus diplomas legais que é proibido ignorar a lei, comporta-se como um "país de brincadeira", onde a quantidade de leis (que prolifera diariamente como coelhos ou baratas) é seguida de uma outra quantidade de produtos hermenêutico-jurídicos que garantem para a elite o descumprimento daquelas, ao lado da demonstração de sua eficácia quando detém um "punguista" ou um crédulo na fitoterapia que resolve descascar um pedacinho de uma árvore para fazer um chá-remédio para sua esposa enferma.
Em contraponto, o Presidente da República assina documentos sem ler (crime de responsabilidade), juízes de Direito se envolvem em casos de prostituição infantil (corrupção de menores) e de má-versação de verbas públicas (peculato), e la nave va.
A pesquisa científica é uma investigação metódica acerca de um assunto determinado com o objetivo de esclarecer aspectos do objeto de estudo. Como, entretanto, irá a massa popular desenvolver elucubrações organizadas, eivadas de lógica, acerca dos disparates observados no cotidiano nacional, se não lhes é dado do direito à aprendizagem sequer de sua língua? A escola básica, na confusão dos construtivismos, tem feito com que o aluno conclua as quatro (ou cinco séries – isto vive mudando!) sem saber mais do que desenhar seu nome e, às vezes, ler alguns anúncios muito difundidos pela TV ou pelos outdoors.
E onde fica a tal da trindade que prometemos focalizar? Ela se impõe no âmbito da interpretação dos
fenômenos que nos cercam a começar pelo entendimento de nós próprios. Nós somos seres físicos,
constituídos de átomos, de moléculas; portanto, sujeitos a ações e reações como qualquer substância presente no espaço. O homem comum (não ou pouco-escolarizado) vê-se apenas como criação divina e entrega-se à fatalidade, aprendendo a conformar-se com o pouco (ou nada) que lhe vem ao alcance, dizendo-se a si e aos seus: - cum u qui si apurô oji, dá pra i iscapano. E é este mesmo cidadão que "lê" as falas políticas sobre seu país, sobre as reformas, sobre as promessas eleitoreiras, etc., e é ele quem vota e elege os delegados governantes que vão continuar no timão do navio, levando-nos para o não-sei-onde.
Uma vez aberto o espaço para a ciência do ver – que é como costumamos batizar a semiótica – passa o sujeito a dispor de elementos capazes de nortearem-lhe o entendimento de sua condição de ser pensante, sensitivo e reativo. Que, a partir dessas sensações e reações, o seu raciocínio entra em funcionamento e deflagra uma cadeia de relações capazes de desfraldar um universo cada vez mais amplo acerca de si mesmo e de seu mundo.
A trindade semiótica – ícone, índice e símbolo – com que o homem comum lida sem saber, portanto, sem tirar o proveito necessário desse lidar, precisa ser revelada desde as primeiras séries escolares,
independentemente da nomenclatura esdrúxula que lhes sirva de rótulo, uma vez que o importante não é o nome, mas o fenômeno, cujo nome denomina e, via de regra, explicita.
O código de trânsito é um dos exemplos mais concretos e corriqueiros da importância dessa trindade e de seu entendimento: são placas com desenhos, são silvos emitidos pelos guardas, são demarcações no asfalto (onde este existe), etc. Por mais ignorante que seja o indivíduo, ele acaba por memorizar a grande maioria dos sinais que constituem o código de trânsito. Por meio desse código, torna-se possível, desde a mais tenra idade, deflagrar-se a aprendizagem com a trindade semiótica apontada (com base na classificação dos signos em relação ao seu objeto referente – cf. C. S. Peirce in Collected Papers). Um sinal como o das curvas é construído de forma icônica e indicial ao
mesmo tempo. É icônico porque tenta representar o "acidente geográfico" em questão; é indicial porque é colocado alguns metros antes da curva para que o indivíduo se prepare para a existência do fenômeno e para a transposição deste. O sinal referencial de perigo (um triângulo com a base voltada para cima), que também é interpretado como indicador de preferencial para a outra via (onde não está o observador do sinal) já é de natureza simbólica, uma vez que não tem nenhuma relação de similaridade com o que quer significar; brota de uma convenção que estabelece seu valor significativo. Logo, em breves linhas se faz possível dar uma noção mínima do que seja um signo icônico (fundado na semelhança); um signo indicial (fundado na contiguidade) e um signo simbólico (estabelecido por convenção).
Com base neste tipo de conhecimento, torna-se possível dar início a uma série de discussões de natureza educacional, portanto, de desenvolvimento cognoscitivo, uma vez que os símbolos nacionais ou religiosos, os dogmas, as crenças, os mitos, as leis, passam a ser hermeneuticamente analisados, permitindo assim um entendimento mínimo da organização social, da distribuição das classes, das escalas discriminatórias, das hierarquias, enfim, da estratificação social, de seus comandos e de seus desmandos.
Segundo Foucault (1995), a organização dos conceitos cria um emaranhado de encontros e desencontros que requer, para seu enfrentamento, uma concentração de forças lógicas que nos permita destrinçar os valores ideológicos que subjazem aos conceitos, para que se possa então entendê-los e, se for o caso, refazê-los, em benefício do progresso social. O conceito, segundo o qual a causa é um poder, ou uma força, é deliberadamente ignorado nas instâncias de planejamento político-educacional por dele emanar a necessidade de compreensão, de inteligibilidade. O
conceito concede ao tempo uma primazia unidirecional, uma vez que as mudanças ocorridas ao longo do tempo não apresentam um paradigma padrão; não exala clareza em seus processos alteratórios, portanto, não deixa claros os significados que a elas subjazem (cf. SHIBLES, 1974). O poder, tomado como causa é quase sempre despercebido pela massa popular, já que são os efeitos que se manifestam à luz e que promovem, via de regra, o desconcerto do mundo. E a ignorância popular, no mais das vezes, atribui tais fenômenos à fatalidade. (Assim tinha de ser!)
No entanto, nós, os ilustrados, sabemos que não é bem assim que as coisas operam. Daí depreendermos que as leis científicas (ou não) são frequentemente concebidas antes como
uniformidades eletivas, do que em termos de regras invioláveis. São, geralmente, atos de poder que geram coerção para que uma intenção (relacionada a um dado objeto) transforme-se em evento, projeto ou programa de trabalho, por meio do qual as mudanças sociais sejam promovidas. E mais, o objeto-valor almejado está sempre vinculado ao desejo das elites dominantes, daí os efeitos serem quase sempre danosos à massa popular.
É preciso um apetrechamento ilustrativo-informativo bem amplo para que não nos deixemos apossar pelas ideias produzidas, difundidas e incutidas por terceiros em nossa mente, para viabilizar uma "virada no jogo", criando-se uma dupla possessão: a de nossa mente pelas ideias e a das ideias por nossa mente (cf. MOURIN, 2000). E nesse jogo dialético em que ideias e reflexões se confrontam e se enfrentam, desenvolvem-se novos caminhos para a reconstrução do homem e do mundo. Daí a necessidade de reformas político-educacionais que toquem na essência, nos fundamentos da educação, e que delineiem fins compatíveis com a trajetória planejada. Não basta pensar-se nos critérios de credenciamento de cursos sem levar em conta toda a produção de diplomados já existente em consequência da proliferação de escolas, cursos, faculdades, centros acadêmicos e mesmo universidades sem ser considerada, em profundidade, a produção real, efetiva, do
elenco de profissionais que ali vai atuar, formando as novas gerações de profissionais.
A reforma da escola nacional tem de estar acoplada a outras reformas (no plano da saúde, da distribuição de renda, etc.) que garantam ao povo condições dignas de vida, a partir do que suas mentes se desenvolvam e se tornem capazes de realizar processos complexos de raciocínio indispensáveis ao aperfeiçoamento dos modelos sociais adequados a uma era de base cibernética.
O domínio dos conhecimentos cibernéticos impõe uma relação íntima com a leitura de sinais. A evolução dos sinais ao status de signo requer uma capacidade reflexiva ainda mais sofisticada, que não se desenvolve em dois ou três fins de semana ou num curso intensivo de 30 ou 40 horas. O domínio de uma teoria de bases filosófico-fenomenológicas, como a de PEIRCE (1975), exige dos estudiosos todo um pré-preparo de conhecimentos gerais que atuarão como facilitadores na compreensão dos caminhos da percepção dos fenômenos, bem como da reação cognoscitiva e consequentes operações que daqueles extrai fórmulas de reorganização das coisas do mundo.
Para ilustrar o pensamento de PEIRCE, para ele, o método científico (tão pouco desenvolvido ou explorado nas escolas) se justificaria em função do fato de que se mostra submisso ao real. É um método em que nossas crenças são determinadas não por algo humano, mas por alguma permanência exterior – por algo sobre que não age o pensamento (v. 5 § 384 – PEIRCE, in Collected Papers ou PEIRCE, 1975: 34).
A familiaridade com a trindade semiótica de PEIRCE, que classifica os signos em suas relações com os objetos – portanto, sua tríade mais simples – já é um passo adiante para que o homem aprenda a relacionar-se com mundo, com a vida, sem que se torne presa fácil dos mil pequenos modelos científicos de discurso que o inserem no contexto do discurso dito competente, anulando sua curiosidade, sua natural busca do saber, por conseguinte, neutralizando sua experimentação, impedindo-lhe a descoberta. A falsa massificação da cultura com os rótulos de globalização, interdisciplinaridade, ou algo que o valha, nada mais é que um discurso autoritário camuflado, que é circular e inócuo quanto aos seus efeitos políticos de transformação social, mas é da mais alta eficiência na reificação do homem, tornando-o cada vez mais distante do poder e mais próximo da robotização.
Destarte, ao focalizarmos como tema A trindade no conhecimento: uma leitura semiótica
libertária, pretendíamos chamar a atenção das escolas, dos estudiosos, dos políticos, para a importância da ciência semiótica no terceiro milênio, não como uma ciência em ascensão, mas como um pano de fundo de projeções metodológicas capazes de subsidiar um processo hermenêutico que promoveria o enriquecimento intelectual humano e, consequentemente, iluminaria o aperfeiçoamento de nosso modelo de estado, minimizando as diferenças e promovendo um padrão de equanimidade há muito almejado por nosso povo.

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